Arnaldo Antunes
Suplemento Literário, nº 48, Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, junho de 1999
Faz dez anos que Leminski se foi;
Dez anos voam.
E a falta que ele faz como criador, agitador cultural e amigo, fica pousada. dilata-se, de tempo em tempo, a cada releitura de seus livros.
Leminski continua a nos surpreender. Novas mensagens vão chegando aos poucos. Vivas.
'Metaformose', por exemplo, é para mim um banho, um deslumbre, uma coisa do nível de 'Catatau' - pela densidade, misto de rigor e pique, achados e perdidos de invenções poéticas, de um fôlego que não deixa baixar a bola do começo ao fim. Inclassificável como gênero (narrativa ou reflexão? poema em prosa ou ensaio? ficção ou texto didático?). Impressionante pelo fato de não ter sido publicado em vida - o que de alguma forma revela as dúvidas, sempre tão presentes em Leminski, sobre o valor real de cada rebento seu ... "Tudo o que eu faço / alguém em mim que eu desprezo / sempre acha o máximo".
E essas surpresas percorrem também 'La vie en close, O ex-estranho, Winterverno'. Como surpreenderam continuam a nos re-surpreender seus caprichos, relaxos, catatau, vidas, distraídos, polonaises, venceremos, anseios, agora, crípticos, é que são elas, minifestos, etcéteras - tantos e tanto.
'Não fosse ... / e era quase'
Leminski se debatia nas fronteiras entre arte e vida. Sua utopia: 'vai vir o dia / quando tudo o que eu diga / seja poesia'. Caso de apego profundo e amoroso à palavra - sede de sua água, fogo de seu ar.
O tom de grande parte do que ele produziu nos coloca numa intimidade conspiratória que não é comum de se ter. Como se nos piscasse o olho, por entre as linhas, identificando sempre algo em comum. Essa crença - a de que cada leitor era um comparsa, cúmplice, parceiro - parece ter alimentado o sotaque tão pessoal de sua poesia ou prosa.
Exercitava estranheza e naturalidade; faces de um mesmo rosto.
As gírias, as expressões coloquiais, as fagulhas da contra-cultura conviviam, com ou/e sem conflitos, com o rigor construtivista, a consciência de linguagem e a precisão e síntese apreendidas nos hai-kais, no zen, no judô.
Antes de tudo poeta, sua inquietude o levou a se aventurar na música popular, na prosa, nos ensaios, nas traduções, nos grafismos, na poesia visual, no jornalismo, nas telas de vídeo ou de cinema, nas edições de revistas; assim como Torquato Neto (que desafinava o 'coro dos contentes', enquanto Paulo fazia 'chover' no seu 'piquenique') e outros de sua geração ('pertenço ao número / dos que viveram uma época excessiva', escreveria ele no poema ' Coroas para Torquato').
Ou talvez essas modalidades todas fossem apenas outras formas dele praticar poesia.
Segundo por segundo. Inspiração por expiração.
Tinha que pegar o cara pelo colarinho. Tinha que sacudir o cara. Tinha que pegá-lo pelo estômago.
Duelava com as teclas da máquina de escrever.
Cada letra um tiro. Um beijo.
Um desafio, um desejo.
Para ele era vida ou vida (Cruz e Souza, Bashô, Jesus, Trotski). Não fazia poesia para comentar a vida, mas para estar vivo.
'Não fosse isso / e era menos'
Agora, após dez anos que ele se foi, vamos vivê-la.
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